sábado, 6 de outubro de 2007

Salvar almas



Lá estava ele, enquanto o sol irradiava pela janela, lá estava ele. Preso a uma vida, que já nem ele esperava viver. Preso a uma sobrevivência que não o deixava morrer, tal como desejava. Olhava o sala em redor, implorando um olhar do mundo, a luz do sol. Que mal fizera o pobre homem? Que mal fizera ele, que parecia não merecer agora o amor de Deus? O único amor que julgara ter em toda sua vida.
Entrei na sala. Pensei em caminhar em frente, alias como fazia sempre, mas algo no seu olhar me deteve. Um olhar doce e seco, cansado de sentir as lágrimas percorrerem o rosto cansado, cansado do sabor salgado que também elas lhe traziam, cansado de si, cansado de morrer a cada dia. O abandono absoluto, presente ali, naquela alma. Até a vida o abandonara. Não, ele não vivia já, sobrevivia apenas. Pensei em continuar, pensei em executar apenas o trabalho que me confiaram. Pensei em abandona-lo, na dor que pertencia só a ele afinal. Num grito de silêncio, implorou-me mais uma vez que o salvasse. Como se eu fosse capaz.
O mundo ter-se-lhe-ia sido negado. Restava eu. No vazio da sala, restávamos só nos, eu e ele. Podia ter-me berrado, tocado a campainha, simulado alguma dor, mas não. Olhava-me apenas. Desfalecido naquela cama, largado como um cão à sua sorte. Um olhar baço dos corações famintos, e no rosto as marcas do cansaço de uma vida. Fechei os olhos. Mas a sua imagem permanecia em mim, presa a mim, tal como ele. Segui em sua direcção, parei e quase sem o olhar, como que amedrontada, perguntei-lhe se algo lhe doía, se precisava de algum sedativo. Não me respondeu. Virei costas, e senti o meu coração latejar com tanta crueldade. Como pude eu ser capaz? Acabara de o matar. Negara-lhe Deus. Inspirei profundamente e lembrei-me de todos os que já vira morrer. Não, não podia deixa-lo abandonar derradeiramente a vida. Ganhei coragem, tornei a caminhar em sua direcção. Não deixei de fixar o seu rosto, e caminhei. Senti o peso de cada passo em mim. Parei face-a-face. Reparei que ele gritava ainda no silêncio. Numa voz doce perguntei-lhe “ Dá-me a sua mão?”. A sua voz não soou. Era agora a sua vez de ser dono do medo. O medo duma criança perdida, que jamais tivera um presente. Tornei a perguntar “ Pode dar-me a sua mão?”. Quase desisti. Mas ele não desistira de mim, esticou a mão com toda a bravura que possuía ainda. Toquei-he e senti as mazelas da vida. O contraste do áspero e macio. Apertei-a como que dedicando aquele pobre homem, toda a força que Deus alguma vez me dera. Depois, depois abracei-o, entreguei naquele abraço todo o amor, entreguei-me naquele abraço. Um abraço fechado. Tão autentico tão nosso, indizível. Senti que chorava. Senti que aqueles olhos secos, eram finalmente lavados pela luz da vida. E chorei, chorei com ele, por ele, por mim, por nós. Também as minhas lágrimas decoravam o meu rosto, naquele aconchego, as lágrimas decoravam-me o rosto. Que paz flutuante, que abraço delicioso! Desejei permanecer ali eternamente. Desenlaçamo-nos e tornei a olha-lo no rosto. Trazia agora no olhar, a luz do mundo, a alegria duma criança que recebe um presente. Trazia no olhar o coração cheio. Vi Deus naquele homem, verdadeiramente. Vi amor nele. E vi a graça eterna. Esboçou um sorriso aberto, incomensurável. Esticou mais uma vez sua mão para que pudesse toca-la e sussurrou-me com toda a calma:
“ Que Deus te abençoe pela graça que constitui a tua vida”
Morreu em seguida. A sua mão perdera força e caíra. Já não era o abandono que transparecia, mas a paz. O sorriso aberto, não desaparecera. O amor pairava ainda no ar.
Percebi que o salvara. Não da doença, não essa jamais o largaria, mas da solidão e do abandono no qual tinha sido largado. Percebi que não era a doença que o matava a cada dia, mas a falta de compaixão. A falta de carinho, a falta de doação. Percebi que lhe devolvera a vida eterna. Devolvera-lhe o sabor de viver, que por segundos pode tornar a sentir. Devolvera-lhe a fé. Devolvera-lhe Deus.

Não mais pensei em fugir de um olhar, não mais ignorei um grito de silencio. Não posso, e ninguém deveria poder. Principalmente quem tem diariamente a oportunidade de salvar vidas, de salvar almas. É esse o encanto o verdadeiro encanto daquilo que escolhi para a minha vida. Foi isso que me propuseram, é nisso que acredito.

2 comentários:

Inês Viterbo disse...

Apetece-me muito abraçar-te e receber de ti essa luz.

José disse...

E porque Deus é nosso, podemos oferecê-lo.