quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Aeroporto


Aeroporto, aqui se chega, se parte. Lugar intermédio, de passagem como todos os outros, mas ainda assim concretização de algo mais. Futuro, presente, passado, espaço físico que os distingue, distingue o tempo e a mecânica do mesmo. Metáfora da passagem da vida, da nossa passagem pela vida num compasso, materialização. Aeroporto. O caminho, os passos e a mudança de espaços nada mais são se não a versão moderna dos fugidos e época de colónias. Visão do mar que nos distancia, a nós fugidos, dos acenos embebidos em saudade. Momentos antes, a presença dos mesmos abraços, o enlace das mãos abrandando a separação de ambas, e no fim solidão. Obrigam-nos a deixar tudo, levamos apenas a roupa suado do corpo, alguns pertences que nos confinam ainda mais a nós mesmos. Mil e uma apalpações, revisões e desconfianças famintas da certeza de que nada levamos, nada se não pertences. Enganam-se se pensam poder tirar-me aqueles que amo por meio de detectores de metais e vasculhações em minhas coisas, minha vida. Hei-de leva-los em mim, colados em meu corpo como sarna, escondidos no pensamento que me faz amar. Teriam de cravar-me as unhas e arrancar-me a pele para que todos os meus amados de meus poros se descamassem. Jamais me matarão assim!
Incessantemente torturas, cadeiras seriadas imputando-me a crença que voarei a outro mundo tendo tanto quanto todos os outros fugidos. Reduz-me. Serei peça preta ou branca num jogo de damas, sem cor nem vida, sem luz.
Estampados no vidro me olham aqueles de quem parti, me olha o passado que ficou lá atrás, à minha esquerda. Na direita, o futuro anseia por mim bem mais que eu por ele. Avançarei sozinha, olharei com hipocrisia os sorrisos plásticos das hospedeiras de bordo e corresponderei suspendendo as bochechas numa meia-lua de lábios. Será a minha passagem ao desconhecido, amedronta-me. Para já, a sala de embarque basta, atrasam-se os medos e posso ainda olhar a esquerda, embora já nem minha mão possa tanger os corpos estampados.
Como que ultrapassando o vidro, ouvem-se gritos da minha terra nas cordas de uma guitarra portuguesa, fado. Sabe-me a pátria, a saudades de casa, sabe-me ao colo de minha mãe, sabe-me a povo. Entranha-se lentamente, cerra-me os olhos. Só assim regressarei a casa, por sonhos imagéticos. Distarei mundos de casa, mas sonhos não medem distâncias, salvam-me. E aqueles que tentaram enforcar-me aprisionando-me numa qualquer sala de embarque, fracassarão. Mesmo que a minha condenação seja o mundo novo, expectante, lá fora, voarei ate aos corpos estampados que são ainda meus, ao passado. Num acto de rebeldia aconchegar-me-á sempre, e por momentos, o colo da minha mãe, o fado, a pátria, o povo.


Barcelona, julho 2008




Metaforisa-me os pensamentos este aeroporto. Vejo-me numa qualquer sala de embarque, as mesmas cadeiras, as mesmas torturas. Um caminho único como no labirinto de Chartres. Apenas duas possibilidades, avançar ou recuar. Procurar um mundo novo, ressuscitar. Aqueles que realmente me pertencem, aqueles a quem pertenço, não me deixarão. São me intrinsecos. Hei-de reconhece-los sempre no partir do pão.