sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Voltaremos um dia


Voltaremos um dia, voltaremos um dia a caminhar no mesmo passo, voltaremos um dia a apertar as mãos, voltaremos um dia a marcar pegadas na areia, tal como naquele fim de tarde. Um fim de tarde cheio de sol, cheio de luz, cheio de nós. Guardei-o em meu peito, para que na nossa ausência, pudesse sentir-me cheia de ti, tal como me sinto agora. Ouço a tua gargalhada inocente, retracta-te tão bem ela. Retracta tão bem o sabor da tua vida, e preenche-me como nenhuma outra. Rimos tanto juntas, naquela tarde, tal como em tantos outras. Entregamo-nos a alegria de nos unirmos. Que alegria é para mim ter-te a meu lado. Que benção quando me olhas.
Desejei-te uma vez que pudesses voar, que não perdesses as asas nem os sonhos. Que não tivesses medo. Desejei ter-te sempre. Junto a mim. Hoje continuo a desejá-lo. Hoje preciso dessa tua luz, dessa tua sede de viver. Faz parte de mim, como algo que já me é intrínseco. Agradeço a Deus a oportunidade de te ter presente, comigo. Agradeço a Deus a forma encarecida como te amo, agradeço a Deus a graça que é amar-te assim. Caramba, tenho descoberto por entre os mundos o amor tão verdadeiro, tão puro. O teu, o de Deus. Repito vezes sem conta que me dói amar assim, me dói amar tanto assim... que me dói ser assim tão amada. Quando penso em tudo o que já nos dedicamos, quando penso em todo que já construímos, descubro a imensidão da nossa amizade. És verdadeiramente uma companheira de caminho- aquele que partilha o pão. Que bonito isto, que bonito sentir que multiplicamos os pães que partilhamos.
Na calada da noite, sonhando acordada penso em ti. Relembro-te, o teu riso, o teu rosto, a tua verdade. Olho o céu. Que brilhante está! Roubou o brilho do teu olhar enquanto dormias. É tarde, dormes certamente, e eu sonho contigo. Recordo os fragmentos do passado tão presentes. Choro a saudade, choro a tua ausência ou a minha não presença, choro a nossa distancia, tao próxima. Choro por medo, medo de te perder. Não te perderei, não a ti. Prometo-te que não deixo. E quando sentires completamente a minha falta. Quando te sentires vazia, sem mim, aperta com força o abraço que te dei em Opino. “ Que o abraço que te entrego hoje posso iluminar-te sempre que da minha luz precisares.”

Voltaremos um dia a caminhar, num fim de tarde.

domingo, 7 de outubro de 2007

Se me amas, não chores


Se conhecesses o mistério imenso

do céu onde agora vivo, este horizonte sem fim,

esta luz que tudo reveste e penetra,

não chorarias se me amas!

Estou já absorvido no encanto de Deus,

na sua infindável beleza.

Permanece em mim o teu amor,

uma enorme ternura,

que nem tu consegues imaginar.

Vivo numa alegria puríssima.

Nas angústias do tempo, pensa nesta casa

onde um dia estaremos reunidos

para além da morte, matando a sede na fonte

inesgostável da alegria e do amor infinito.

Não chores, se verdadeiramente me amas!



St. Agostinho

sábado, 6 de outubro de 2007

Salvar almas



Lá estava ele, enquanto o sol irradiava pela janela, lá estava ele. Preso a uma vida, que já nem ele esperava viver. Preso a uma sobrevivência que não o deixava morrer, tal como desejava. Olhava o sala em redor, implorando um olhar do mundo, a luz do sol. Que mal fizera o pobre homem? Que mal fizera ele, que parecia não merecer agora o amor de Deus? O único amor que julgara ter em toda sua vida.
Entrei na sala. Pensei em caminhar em frente, alias como fazia sempre, mas algo no seu olhar me deteve. Um olhar doce e seco, cansado de sentir as lágrimas percorrerem o rosto cansado, cansado do sabor salgado que também elas lhe traziam, cansado de si, cansado de morrer a cada dia. O abandono absoluto, presente ali, naquela alma. Até a vida o abandonara. Não, ele não vivia já, sobrevivia apenas. Pensei em continuar, pensei em executar apenas o trabalho que me confiaram. Pensei em abandona-lo, na dor que pertencia só a ele afinal. Num grito de silêncio, implorou-me mais uma vez que o salvasse. Como se eu fosse capaz.
O mundo ter-se-lhe-ia sido negado. Restava eu. No vazio da sala, restávamos só nos, eu e ele. Podia ter-me berrado, tocado a campainha, simulado alguma dor, mas não. Olhava-me apenas. Desfalecido naquela cama, largado como um cão à sua sorte. Um olhar baço dos corações famintos, e no rosto as marcas do cansaço de uma vida. Fechei os olhos. Mas a sua imagem permanecia em mim, presa a mim, tal como ele. Segui em sua direcção, parei e quase sem o olhar, como que amedrontada, perguntei-lhe se algo lhe doía, se precisava de algum sedativo. Não me respondeu. Virei costas, e senti o meu coração latejar com tanta crueldade. Como pude eu ser capaz? Acabara de o matar. Negara-lhe Deus. Inspirei profundamente e lembrei-me de todos os que já vira morrer. Não, não podia deixa-lo abandonar derradeiramente a vida. Ganhei coragem, tornei a caminhar em sua direcção. Não deixei de fixar o seu rosto, e caminhei. Senti o peso de cada passo em mim. Parei face-a-face. Reparei que ele gritava ainda no silêncio. Numa voz doce perguntei-lhe “ Dá-me a sua mão?”. A sua voz não soou. Era agora a sua vez de ser dono do medo. O medo duma criança perdida, que jamais tivera um presente. Tornei a perguntar “ Pode dar-me a sua mão?”. Quase desisti. Mas ele não desistira de mim, esticou a mão com toda a bravura que possuía ainda. Toquei-he e senti as mazelas da vida. O contraste do áspero e macio. Apertei-a como que dedicando aquele pobre homem, toda a força que Deus alguma vez me dera. Depois, depois abracei-o, entreguei naquele abraço todo o amor, entreguei-me naquele abraço. Um abraço fechado. Tão autentico tão nosso, indizível. Senti que chorava. Senti que aqueles olhos secos, eram finalmente lavados pela luz da vida. E chorei, chorei com ele, por ele, por mim, por nós. Também as minhas lágrimas decoravam o meu rosto, naquele aconchego, as lágrimas decoravam-me o rosto. Que paz flutuante, que abraço delicioso! Desejei permanecer ali eternamente. Desenlaçamo-nos e tornei a olha-lo no rosto. Trazia agora no olhar, a luz do mundo, a alegria duma criança que recebe um presente. Trazia no olhar o coração cheio. Vi Deus naquele homem, verdadeiramente. Vi amor nele. E vi a graça eterna. Esboçou um sorriso aberto, incomensurável. Esticou mais uma vez sua mão para que pudesse toca-la e sussurrou-me com toda a calma:
“ Que Deus te abençoe pela graça que constitui a tua vida”
Morreu em seguida. A sua mão perdera força e caíra. Já não era o abandono que transparecia, mas a paz. O sorriso aberto, não desaparecera. O amor pairava ainda no ar.
Percebi que o salvara. Não da doença, não essa jamais o largaria, mas da solidão e do abandono no qual tinha sido largado. Percebi que não era a doença que o matava a cada dia, mas a falta de compaixão. A falta de carinho, a falta de doação. Percebi que lhe devolvera a vida eterna. Devolvera-lhe o sabor de viver, que por segundos pode tornar a sentir. Devolvera-lhe a fé. Devolvera-lhe Deus.

Não mais pensei em fugir de um olhar, não mais ignorei um grito de silencio. Não posso, e ninguém deveria poder. Principalmente quem tem diariamente a oportunidade de salvar vidas, de salvar almas. É esse o encanto o verdadeiro encanto daquilo que escolhi para a minha vida. Foi isso que me propuseram, é nisso que acredito.